Quem vive todos os dias no carro sabe: a relação começa no amor e pode terminar em ódio
Carro é casamento. Vai muito além da amizade, especialmente se você vive todos os dias com ele, para cima e para baixo. E o jeito que nos aproximamos de um automóvel é até parecido com o jeito que escolhemos uma parceira ou um parceiro. Pode ser uma escolha consciente, quando se privilegiam atributos com base na razão, ponderadamente pesando os prós e contras, ou inconsciente, quando algo nos arrebata sem sabermos o por quê.
Como todo casamento — saberão com mais intensidade aqueles que são casados —, os defeitos e senões vão ficando mais e mais evidentes com o passar do tempo. As qualidades consolidam-se, também. Esses defeitos podem ser das categorias leves ou irrelevantes, como podem ser insuportáveis e forçarem uma separação, por vezes litigiosa.
Na linha da convivência, tive más experiências que terminaram em separação, como numa relação que não dá certo: tristeza, raiva, decepção
Neste ano completo 20 anos de habilitação e como a maioria de vocês, leitores adoradores das latinhas motorizadas, também amanheci na autoescola no dia de completar os 18 anos. Até hoje, passaram pela minha vida nada menos que 13 carros. Anualmente ou a cada dois anos, dava aquela irresistível vontade de mudar de carro para testar novos mundos e novos padrões de convivência. Juntava um dinheirinho e inteirava na compra de outro usado.
Sinceramente, todas as trocas foram desnecessárias do ponto de vista racional, já que todos os carros estavam inteiros — aqueles que não estivessem, eu os deixava. Sortudos eram aqueles que compravam de mim, isso sim! Na linha da convivência, porém, tive más experiências que terminaram em separação, como numa relação que não dá certo. Tristeza, raiva, decepção… Esses carros me magoaram e depois de um tempo não suportei. Pedi o divórcio. Vejamos os motivos.
Meu primeiro carro foi um saudoso Fiat Uno Mille EP 1997, três-portas. Ah, tudo o que é “primeiro” deixa um gosto especial, um afeto que não passa. Tive que repassá-lo um ano depois, pena. Descuidei da manutenção por desconhecimento e, com 60 mil quilômetros, ocorreu o óbvio do motor Fiasa: partiu-se a correia dentada do comando de válvulas. Quase perco o cabeçote e as válvulas ficaram crepitando, naquele tec-tec-tec. Decidi não gastar e repassar, com tristeza. Amava o carro. Era lento, a suspensão traseira com feixe de molas transversal cantava como uma cuíca, mas tinha incrível dirigibilidade e o interior era um vagão da Rede Ferroviária Federal.
Pontos inegociáveis
Quem veio depois não me agradou e pedi separação: um Fiat Palio EL 1997, também equipado com um Fiasa, mas de 1,5 litro. A direção assistida hidráulica era a estrela. O motor era fraco e não passava dos 8 km/l com gasolina. Como usava o carro no caminho do trabalho, isso era um problema. Mas o que causou a separação foi mesmo a barulheira do interior. Todos os plásticos batiam, rangiam, estalavam, tamborilavam. Aquilo me torturava e não suportei: pedi divórcio com seis meses. Repassei para meu pai, que adorou— afinal, o carro tinha incríveis 12 mil km com quatro anos de uso.
As relações seguintes foram mais amistosas, amorosas até. Veículos que me serviram mecânica e afetuosamente. Fui descobrindo no ramerrame da rotina aquilo de que gostava e o que detestava. Barulhos internos: ódio, inegociável. Carros com isso eram logo cortados do relacionamento. Suspensão dura demais: ódio. Numa cidade como São Paulo, ter um veículo com suspensão dura é insalubre, piora a hérnia de disco, causa irritação e descadeiramento.
Com veículos que me serviram mecânica e afetuosamente, fui descobrindo no ramerrame da rotina aquilo de que gostava e o que detestava em cada um
Motor fraco: tolerável. Quem precisa de força para andar, se muito, a 50 km/h na metrópole? Gasto excessivo de combustível: tolerável. Andava pouco. A diferença no bolso ao fim do mês não seria relevante. Ergonomia: depende… avaliação caso a caso. Numa convivência próxima, corpo a corpo, só Deus sabe o quanto irrita procurar botão do vidro no lugar errado, se contorcer para apanhar a fivela do cinto ou buzinar na alavanca da seta.
Meu último divórcio foi com outro Fiat Uno, um Way 1,0-litro desse modelo novo, comprado zero-km em 2010. Aprendi na prática que não se deve comprar carro recém-lançado, arrebatado pela paixão na bela cor verde box. O motor era manco, falhava demais, não dava partida com álcool nem que eu colocasse um cobertor para o neném não resfriar à noite. O limite da relação chegou quando pegamos juntos a primeira chuva. Meu braço esquerdo encharcou, tamanha quantidade de pingos que escorreram pela porta. Repassei com seis meses de relação.
Importante foi aprender que não existe parceria perfeita, claro. Todos têm seus defeitinhos na convivência e, de perto, ninguém é normal. Só que conhecer quais são nossos pontos inegociáveis — que podem variar desde a confiabilidade até coisas aparentemente mais tolas, como os barulhos internos — vai nos tornando mais assertivos na escolha do par para o casamento automobilístico. Entre essas e outras, um amigo brinca que eu queria mesmo era casar com um Ford Landau: painel de ferro zero-barulho, suspensão padrão transatlântico e volante cuidadosamente apoiado nas coxas. Acho que ele tem razão.
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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars