Carros que dirigem sozinhos parecem a solução ideal hoje,
tempo no qual cada vez mais pessoas só guiam por obrigação
Moro há quase três anos em Piracicaba, SP, uma aprazível metrópole com relevo acidentado e declividade média de 7,8%. Desconheço o grau de declividade da Av. Raposo Tavares, mas posso afirmar que é uma ladeira considerável, com 1,1 quilômetro de extensão entre o ponto mais alto e o ponto mais baixo.
Há poucos dias, ao descer essa via com meu carro engrenado em segunda marcha, percebi que o automóvel compacto à frente estava com as luzes de freio constantemente acesas: logo constatei se tratar de motorista inexperiente ou mal formado, pois era notório que não fazia uso do freio-motor. Diante daquela situação, previ a iminência de um acidente.
Bastou imaginar: no fim da avenida o veículo trava as rodas traseiras de maneira súbita, derrapa, avança sobre a calçada e atinge uma árvore. Mãe e filha a bordo nada sofreram. Passado o susto, saltavam aos olhos as precárias condições dos pneus e a fumaça que saía das rodas dianteiras. “Não sei o que aconteceu: o carro ficou sem freio, aí puxei o freio de mão…”, a moça tentava justificar.
Com a inexistência de um transporte público
de qualidade, o automóvel torna-se
prioritário, ainda que caro e restrito a poucos
Apesar do impacto, tanto o cárter quanto o radiador estavam íntegros. A divergência das rodas dianteiras indicava avaria na suspensão, mas era possível voltar para casa rodando com ajuda do estepe. Foi preciso esperar alguns minutos antes de realizar a troca: os parafusos estavam tão quentes que o calor era rapidamente conduzido para a chave de roda.
Ficou claro que nem mesmo os freios a disco ventilados foram capazes de lidar com tamanho abuso: neste caso, a situação de risco não foi provocada pela ineficiência ou ausência de um sistema, mas sim pela completa imperícia da condutora — o acidente teria ocorrido ainda que presentes sistemas como freios antitravamento e controle de estabilidade.
Em países desenvolvidos, milhões de pessoas adquirem automóveis pela individualidade que ele proporciona: a possibilidade de ir e vir pelos caminhos desejados, nos horários mais convenientes. Em muitos casos não se trata de necessidade, mas de comodidade: a satisfação de um gosto pessoal, quase sempre aliado ao prazer de guiar um automóvel.
Aqui lidamos com a inexistência de um transporte público de qualidade — assim o automóvel torna-se prioritário, ainda que caro e restrito a uma pequena parcela da população. E hoje uma parte considerável dos motoristas não dirige por prazer, mas por obrigação: o desinteresse sobre o tema acaba resultando em barbeiragens como a que ocorreu em Piracicaba.
Sensações dinâmicas
Sou do tempo em que o interesse por automóveis era tão natural quanto a atração pelo sexo oposto, cultivado desde a infância pelos carrinhos de brinquedo e potencializada pela sensação dinâmica dos rolimãs e skates. Na turma sempre havia um adolescente motorizado, ainda que clandestino — tudo para conhecer novas garotas além dos bairros vizinhos.
A sensação de segurança vinha após os primeiros contatos com a máquina: o exaurimento da experiência consistia em descobrir suas limitações técnicas e dinâmicas. Subesterço, indução ao sobresterço, cavalos de pau, largadas e frenagens com muita borracha queimada, um ou outro componente avariado — às vezes ficávamos a pé até juntar a grana do conserto.
As dores no bolso também tinham um fator educativo: bisbilhotar nas oficinas era como ter aulas práticas de mecânica automotiva. Ou de economia, já que serviços fáceis passavam a ser feitos nos quintais, garagens ou mesmo na porta de casa — cansei de trocar pastilhas de freio na rua. Não por mesquinharia, apenas pela diversão de se sujar com graxa.
O resto vinha no embalo: coletor de escapamento dimensionado, comando de válvulas bravo, cabeçote trabalhado, carburador acertado, turbo, bico injetor suplementar, suspensão rebaixada, freios melhorados e modificações nada práticas que serviam apenas para alimentar o próprio ego. Tudo para impressionar as garotas: como era bom viajar acompanhado!
Antigo símbolo de liberdade, o carro
hoje é visto como sinônimo de atraso, uma
máquina politicamente incorreta
Mas o automóvel já não exerce o mesmo desejo: nativos digitais, os adolescentes de hoje paqueram de forma virtual, online, através de seus telefones conectados às redes sociais. É cada vez maior o número de jovens que chegam à maioridade e demoram meses, quando não anos, para procurar um Centro de Formação de Condutores — na minha época, o primeiro passo na Auto-Escola era dado com a 18ª. vela ainda acesa.
Antigo símbolo de liberdade, o automóvel hoje é visto como sinônimo de atraso ideológico: tornou-se uma máquina politicamente incorreta, que mata, polui e invade espaços públicos. Se as crianças de hoje nos perguntam como era possível viver sem telefones celulares, em breve nos perguntaremos como será possível viver sem os automóveis.
O interesse nos automóveis não minguou por completo: impressionei-me com a fila de entusiastas de todo o Brasil aguardando a abertura da 28ª. edição do Salão do Automóvel. Sediado na terra mater da indústria automobilística nacional, o sucesso do evento contrasta com as ideias coloridas do corajoso prefeito, expressas em faixas pintadas no asfalto.
Ônibus e bicicletas parecem uma ideia formidável para quem não abre mão da prerrogativa do carro oficial, sempre guiado por um motorista. O paulistano médio só desfruta desse privilégio quando pega um táxi, mas em breve conhecerá outra forma de usufruir desta comodidade: tal quais os híbridos, os automóveis autônomos logo farão parte da realidade cotidiana.
Parece assustador, mas fica interessante quando lembramos que dirigir em São Paulo (e em muitas capitais) há muito deixou de ser um prazer: além do inegável incremento na qualidade de vida, haveria ainda vantagens como a inclusão de portadores de necessidades especiais e a redução dos acidentes por fatores humanos, como o que abriu esta coluna.
Por enquanto, resta apenas saber como seria feita a segregação das vias públicas entre automóveis autônomos e não autônomos: como um idoso que se recusa a aposentar o pedal de embreagem, será que haveria espaço para os entusiastas recalcitrantes e suas máquinas antiquadas?
Só espero que o prazer de dirigir um automóvel não seja extinto pelo monitoramento constante das vias com seus ridículos limites de velocidade. E que a rebeldia juvenil seja apenas uma saudosa lembrança dos tempos de motorização clandestina em busca de novas namoradas.
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