Como são feitos os ensaios de acidentes, que seguem vários
padrões para mensurar como o automóvel protege os ocupantes
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Testes de colisão (crash tests), cinco estrelas em segurança passiva, impactos frontais e laterais: em questão de pouco tempo, expressões que já faziam parte do cotidiano de compradores de automóveis nos mercados desenvolvidos tornaram-se frequentes também no Brasil, impulsionadas pela criação em 2010 do Latin NCap — braço latino-americano do instituto independente que analisa, mundo afora, a segurança dos carros em colisões para orientar a escolha do consumidor. Mas, afinal, o que tudo isso significa e como são feitos tais testes?
Provocar colisões com automóveis — contra uma barreira, outro veículo ou um diferente obstáculo — é algo que se faz na indústria há pelo menos 80 anos, como atestam registros de diversas marcas (a General Motors teria sido a pioneira, nos Estados Unidos, em 1934). Mas foi só em 1979 que surgiu, também nos EUA, o primeiro programa governamental para analisar o comportamento dos carros em acidentes e o nível de proteção oferecido a seus ocupantes, promovido pela National Highway Traffic Safety Administration (administração nacional da segurança do trânsito em rodovias, NHTSA).
Um teste de colisão promovido nos Estados Unidos pela Ford, em
1955, e um boneco para análise dos ferimentos (dummy) dos anos 60
Hoje os testes de colisão de maior relevo são efetuados nos EUA tanto pela NHTSA, por meio do Federal Motor Vehicle Safety Standard (padrão de segurança federal para veículos a motor, FMVSS) e do New Car Assessment Program (programa de avaliação de carros novos, NCap), quanto pelo Insurance Institute for Highway Safety (instituto de seguro pela segurança em rodovia, IIHS). Foi o IIHS o responsável pela introdução de testes em condições diferenciadas, como o impacto frontal deslocado (offset crash) em 1995 e as colisões laterais em 2003.
Os “bonecos” de teste custam mais de US$ 400 mil e trazem sensores de velocidade, força do impacto, desaceleração e torção
O NCap atua também, por meio do programa Global NCap, na região da Ásia-Oceania (ANCap), na China (CNCap), na Coreia do Sul (KNCap), no Japão (JNCap), na Europa (Euro NCap) — o primeiro programa do gênero fora dos EUA, estabelecido em 1997 — e na América Latina (Latin NCap). Existem ainda os testes do Auto Review Car Assessment Program (ARCap) e do Allgemeiner Deutscher Automobil-Club (automóvel-clube geral alemão, Adac).
Rigidez, só na cabine
Os testes de impactos têm como objetivo avaliar diferentes aspectos do veículo. No passado, as carrocerias eram construídas de maneira rígida, o que transmitia aos ocupantes maior parcela do impacto das colisões, causando-lhes sérias lesões e maior risco de morte. Estudos mostraram que maior proteção seria obtida com estruturas deformáveis, capazes de absorver uma parte do impacto, o que levou às chamadas zonas de absorção ou de deformação na frente e na traseira.
O impacto do Volvo V40 pelos padrões Euro NCap, a 64 km/h, mostra
o resultado desejável: deformação da frente, mas cabine rígida
Para as cabines, porém, a rigidez é desejável: sua estrutura deve permanecer íntegra, com menor risco de que painel, colunas ou outros elementos invadam o espaço de que os ocupantes precisarão para dissipar a energia do impacto. Portas não devem travar com a colisão, assoalhos não devem fletir. Vários carros de projeto moderno usam aços de diferentes resistências nas várias partes da estrutura para atender às demandas de cada parte.
Outro aspecto observado nos testes é o das lesões aos ocupantes. Cintos de segurança, seus pretensionadores e bolsas infláveis cada vez mais numerosas (frontais, laterais, de joelhos, do tipo cortina — as que cobrem a área envidraçada lateral) respondem pela retenção do motorista e dos passageiros, mas o desenho de componentes internos como painel, volante, pedais e demais comandos também afeta seu grau de proteção.
Os testes são feitos em condições bastante rigorosas, com uso de câmeras capazes de registrar as cenas em filmagem muito rápida — a NHTSA emprega 15 câmeras, cada uma apta a cerca de 1.000 quadros por segundo. Faixas brancas em “X” nos pneus podem ser pintadas para mostrar o exato momento em que deixam de girar, facilitando a visualização nas filmagens.
Os dummies são dispositivos sofisticados, com sensores que mensuram
os impactos e esforços ao corpo de adultos e crianças (à direita)
Como analisar os efeitos dos impactos ao corpo humano? No início chegou-se a fazer testes como cadáveres, o que logo trouxe dificuldades: além de aspectos morais, não havia como comparar resultados (cada corpo ou área do corpo só servia para analisar um teste) e seria difícil obtê-los na quantidade necessária para ampliar os estudos. Testes com animais como chimpanzés e porcos anestesiados ajudaram em alguns casos, mas os efeitos não podiam ser diretamente transpostos aos de um acidente com humanos, além de despertarem protestos de entidades de proteção animal.
Foi assim que se começou o desenvolvimento do dispositivo antropomórfico de teste (ATD na sigla em inglês), mais conhecido como dummy. A ideia não é recente: em 1949 o laboratório Alderson Research Labs (ARL) e a Sierra Engineering já haviam elaborado o Sierra Sam, um boneco para testes de cintos de segurança, capacetes e bancos ejetores para fins aeronáuticos. A General Motors assumiu a criação de um ATD similar e em 1971 apresentou seu Hybrid I, que seguia altura, peso e proporções medianas de um homem adulto. Mais tarde foram feitos ATDs que simulavam mulheres e crianças de três, seis e 10 anos. O padrão Hybrid III é obrigatório hoje nos EUA.
O nível de sofisticação dos dispositivos não parou de subir, de modo que esses onerosos “bonecos” chegam a custar mais de US$ 400 mil (cerca de R$ 1,2 milhão) e trazem sensores como os de velocidade e força do impacto, desaceleração e torção. Os acelerômetros na cabeça dos ATDs, por exemplo, medem a aceleração nas três dimensões: para frente/trás, para cima/baixo e para esquerda/direita. Existem ATDs específicos para testes de colisão lateral e os que detectam riscos à coluna cervical em colisões por trás, o chamado “efeito chicote”.
O Nissan Tsuru mexicano, um velho Sentra ainda em produção, revela
forte deformação de colunas, teto e porta em teste do Latin NCap
A pintura de cada seção do boneco em diversas cores facilita identificar os contatos ocorridos com várias partes do interior. Por exemplo, a face pode ser azul para evidenciar a pressão feita à bolsa inflável, enquanto joelhos em vermelho evidenciam o impacto com o painel e a coluna de direção durante o teste.
Os institutos e seus métodos
Enquanto nos Estados Unidos os testes de colisão são feitos basicamente por órgãos do governo federal, na Europa o instituto Euro NCap constitui um órgão independente da indústria e do controle político. Criado na Inglaterra, ele recebeu a adesão de seis outros países, conta com recursos financeiros de cada membro e admite que fabricantes cubram os custos de testes de seus carros, sem influenciá-los. O NCap segue os métodos de teste da legislação europeia com parâmetros mais severos: o impacto frontal, por exemplo, é feito a 64 km/h contra 56 km/h do previsto em lei. Já a NHTSA e o IIHS têm seus próprios parâmetros.
Os testes do Euro NCap atribuem notas de zero a cinco estrelas aos veículos, conforme seus resultados em quatro categorias: proteção do adulto (motorista e passageiro ao lado), proteção da criança, proteção em pedestre e tecnologias de assistência à segurança. Os ensaios englobam impacto frontal, impacto lateral, análise do “efeito chicote” em impacto pela traseira e análise da parte dianteira quanto à proteção de pedestre. A pontuação obtida pelo carro considera ainda a aplicação de itens como controle eletrônico de estabilidade, limitador de velocidade e alerta para o uso do cinto.
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